Os digital twins na saúde, ou gêmeos digitais, começam a se consolidar como uma das ferramentas mais promissoras da transformação digital na área médica.
A partir de uma representação virtual é possível testar intervenções, prever desfechos e apoiar decisões médicas com mais precisão.
Para entender onde essa tecnologia já está avançando e quais desafios ainda precisam ser enfrentados, entrevistamos André Bressan, médico pediatra, especialista em gestão de saúde, fundador da AB Consult e CMIO da rapha.health.
Com experiência em health tech, ele acompanha de perto as tendências que envolvem IA na saúde, modelagem biomédica e inovação hospitalar. Acompanhe!
Digital twin na saúde: um mapa que se move com o paciente
Bressan explica que o gêmeo digital “é uma representação virtual dinâmica de uma pessoa, órgão ou sistema biológico, construída a partir de dados reais que se atualizam continuamente”.
A diferença para as simulações convencionais está na personalização. Enquanto o modelo tradicional cria cenários hipotéticos, o digital twin busca espelhar o comportamento de um indivíduo específico em tempo quase real.
Segundo ele, isso abre espaço para “prever desfechos, testar intervenções e apoiar decisões médicas com mais segurança e eficácia”.
Mas deixa um alerta importante: o gêmeo digital é um mapa, não o terreno. Nas palavras do especialista, um gêmeo digital “não substitui o paciente real; oferece um mapa rico e realista, mas ainda é um mapa”, afirma.

Transformação digital em saúde: onde os gêmeos digitais já são usados?
Embora o Brasil ainda esteja nos primeiros passos, aplicações concretas já são realidade em outros países, especialmente nos Estados Unidos e na Ásia.
De acordo com Bressan, as aplicações mais maduras em digital twins na saúde se concentram em três frentes:
Planejamento clínico e cirúrgico
Os modelos personalizados permitem simular procedimentos cardíacos e ortopédicos, prever o posicionamento ideal de próteses e reduzir riscos intraoperatórios.
É um campo em que a simulação clínica ganha profundidade ao incorporar características individuais.
Gestão hospitalar e logística
As simulações de fluxo de pacientes, rotas de medicamentos e ocupação de leitos ajudam na otimização de recursos e redução de desperdícios.
Bressan cita o Hospital da Mulher, de Feira de Santana-BA, como um exemplo nacional desse tipo de inovação hospitalar.
Pesquisa biomédica
Conforme Bressan, os modelos de órgãos e tecidos ajudam a testar hipóteses e validar dispositivos médicos.
Para o futuro, o especialista acredita que a tecnologia médica avançada deve acelerar o desenvolvimento de medicamentos e diagnósticos, aproximando ciência básica e prática clínica.
A força da Inteligência Artificial nos gêmeos digitais
“A Inteligência Artificial é o motor cognitivo dos gêmeos digitais”, explica Bressan.
No entendimento do médico, ela processa dados genéticos, fisiológicos, clínicos e comportamentais, atualizando o modelo conforme o paciente muda.
Para o especialista, a combinação entre modelos fisiológicos e algoritmos de aprendizado de máquina cria ferramentas capazes de prever respostas terapêuticas, antecipar descompensações e reduzir incertezas.
Ele lembra que o uso de IA em saúde no Brasil precisa seguir a LGPD e a RDC 657/2022, que regula softwares como dispositivos médicos. Isso garante rastreabilidade, segurança e validação clínica.
Experimentação virtual para tratamentos personalizados
Ao permitir testes sem risco, os digital twins na saúde criam um ambiente seguro para desenvolver terapias personalizadas.
“É possível simular combinações de terapias, doses, tempos de tratamento e interações farmacológicas”, explica Bressan.
Esse processo reduz custos, acelera pesquisas e fortalece a medicina personalizada.
O especialista também afirma que a modelagem biomédica ajuda a entender como cada organismo responde a um tratamento preditivo, apoiando condutas mais próximas da realidade do paciente.
O desafio de integrar dados complexos
Para construir um gêmeo digital confiável, é preciso integrar dados genéticos, imagens, sensores e registros clínicos, uma tarefa que ainda enfrenta barreiras técnicas.
“O principal desafio é a interoperabilidade semântica entre diferentes sistemas”, afirma o médico.
Também é essencial garantir governança e qualidade dos dados. Se os dados falham, o modelo falha.
Bressan destaca ainda a necessidade de investimentos contínuos para manter infraestrutura, pesquisa e validação atualizadas.
Infraestrutura e computação de alto desempenho
As simulações de larga escala exigem mais do que servidores robustos. “Os hospitais precisam investir em hardware, governança digital, interoperabilidade e segurança cibernética”, explica Bressan.
Ele aponta caminhos promissores, como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e iniciativas de nuvem pública para dados de saúde previstas na Estratégia de Saúde Digital.
Esses projetos podem reduzir a dependência de infraestrutura estrangeira e aumentar a capacidade local para inovação hospitalar.

Transformação da medicina preventiva e preditiva
Com dados longitudinais e IA, os gêmeos digitais podem transformar diagnósticos precoces e tratamentos ajustados em tempo real.
Em condições crônicas, por exemplo, o modelo pode antecipar crises e sugerir mudanças personalizadas para evitar complicações.
“Isso representa uma virada de paradigma: sair do modelo reativo e curativo para um modelo proativo”, afirma Bressan.
A adoção no SUS, segundo ele, pode fortalecer a atenção primária, embora dependa de ajustes em incentivos econômicos e profissionais do setor de saúde.
Ética, regulação e o risco de confundir modelo e realidade
As barreiras não são apenas tecnológicas. É preciso garantir transparência, supervisão humana e equidade no acesso.
A LGPD orienta o uso de dados sensíveis; a RDC 657/2022 define requisitos para softwares médicos.
Mas há também o fator cultural. “O desafio é evitar o equívoco de confundir o modelo com a realidade”, afirma Bressan.
Ele projeta um futuro em que cada indivíduo possa ter seu próprio gêmeo digital, usado para autocuidado e aprendizado — sempre com acompanhamento profissional.
Estudos de caso: avanços, mas ainda sem resultados clínicos amplos
Apesar do entusiasmo, ainda não há evidências consolidadas de impacto direto em grandes populações.
Bressan cita projetos de destaque. São eles:
Living Heart Project (Dassault Systèmes)
De acordo com Bressan, esse projeto cria um modelo digital detalhado do coração humano, usado para simular funcionamento e doenças.
Os estudos publicados focam mais na precisão e viabilidade do modelo do que em resultados clínicos.
FEops HEARTguide
Esse é um modelo usado comercialmente na Europa para simular implantes cardíacos personalizados.
Apesar do avanço regulatório, estudos que comprovem ganhos claros ainda são limitados.
No Brasil, pesquisas se concentram em fluxos hospitalares, como gestão de UTIs e otimização assistencial — áreas distintas da simulação clínica direta.
Um impacto profundo na formação médica e na pesquisa farmacêutica
O uso de digital twins pode transformar o ensino de medicina e a pesquisa farmacêutica. Estudantes podem simular cenários raros sem risco.
Ensaios clínicos in silico podem reduzir custos e acelerar descobertas. A relação médico-paciente também deve mudar, com modelos que ajudam a visualizar escolhas terapêuticas.
Para Bressan, um ponto permanece central: “O gêmeo digital pode ampliar a compreensão da saúde, mas o cuidado humano continua sendo o elo central.”
Em outras palavras, a tecnologia avança, mas a medicina segue sendo, antes de tudo, uma prática voltada para pessoas reais.
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