A essência da prática da medicina é obter o máximo possível de dados sobre a saúde ou a doença do paciente e tomar decisões com base nisso. Os médicos dessas últimas safras precisam confiar muito mais em sua experiência, julgamento e habilidades de resolução de problemas para tomar decisão. Obviamente que hoje dispomos de uma série de equipamentos que facilitam no diagnóstico, mas a análise, diagnóstico e decisão ainda recaí no profissional da saúde. A questão não é tirar esse poder de decisão, mas sim, dar suporte e confiabilidade ao que é decidido.
Com a transformação cultural chamada Saúde Digital, as tecnologias disruptivas começaram a disponibilizar métodos avançados não apenas para profissionais médicos, mas também para seus pacientes. Essas tecnologias, como genômica, biotecnologia, sensores vestíveis (wearables), big data e inteligência artificial (IA), estão gradualmente levando a três direções principais:
1. Pacientes ativos no processo de geração de dados
2. Enxurrada de dados que demandam análises avançadas
3. Criação de uma base digital de dados para estruturar a medicina de precisão.
A partir do momento que cada um gera dados sobre si, a medicina começa a ganhar uma característica nunca antes vista: a personalização.
"Ahhh, mas o meu médico escolhe o tratamento com base nas minhas queixas e sintomas, isso é personalização!"
Não não, pequeno gafanhoto.
Essa é ainda uma medicina escorada na experiência, com uma dose de “tentativa e erro” e uma pitada de medicina baseada em evidências (uns com maior, outros com menor uso desse importante ingrediente).
Nos séculos anteriores, a saúde concentrou-se em elaborar soluções generalizadas que pudessem tratar o maior número de pacientes com sintomas semelhantes. Está errado? Para o que se tinha ao alcance, não, mas já não serve com a mesma eficácia hoje.
Hipócrates recusa os presentes de Artaxerxes. O médico grego Hipócrates “o Grande” ou Hipócrates de Cos (460-370 AC) recusa-se a tratar Artaxerxes II Mnemon, rei da Pérsia e Faraó do Egito, apesar dos importantes presentes
Se o xarope para tosse era bom para a maioria das pessoas com tosse e apenas algumas pessoas apresentavam uma erupção cutânea como reação alérgica a ele, não havia dúvida sobre o tratamento com xarope para tosse. A obtenção de experiência e evidência empírica de forma generalizada foi o método de trabalho da comunidade médica desde Hipócrates até por volta do início do século XX.
Com o refinamento das ferramentas de diagnóstico, o desenvolvimento de novos fármacos e métodos médicos, a saúde vem passando por profundas mudanças desde o início do século passado. A abordagem da medicina baseada na experiência e um pouco de “tentativa e erro” deu lugar à medicina baseada em evidências. Como consequência, os médicos não apenas prescreveram tratamentos porque seus ancestrais também usaram os mesmos métodos, mas sim porque comprovaram a eficácia dos tratamentos e métodos diagnósticos em artigos científicos e estudos clínicos. Eles mapearam extensivamente por que a dor de garganta é melhor tratada com xarope para tosse e começaram a analisar os efeitos colaterais dele. As pessoas com uma reação alérgica ficaram sabendo que era melhor não usar esse tipo de remédio, e recorrer a uma solução alternativa. E assim vem sendo a nossa medicina atualmente, com uma “precisa imprecisão”.
A Medicina de Precisão
"A medicina de precisão é uma abordagem emergente para o tratamento e prevenção de doenças que leva em consideração a variabilidade individual em genes, ambiente e estilo de vida de cada pessoa." National Institutes of Health
Essa abordagem permite que médicos e pesquisadores prevejam mais com precisão quais estratégias de tratamento e prevenção para uma determinada doença funcionarão em quais grupos de pessoas. Processar a quantidade de dados necessários para poder entregar essas soluções requer poder computacional significativo; algoritmos que podem aprender sozinhos a uma taxa sem precedentes (aprendizagem profunda); e, geralmente, uma abordagem que usa as capacidades cognitivas dos médicos em uma nova escala – Inteligência Artificial.
Foi demonstrado que os algoritmos de aprendizado profundo fazem diagnósticos pelo menos tão bem quanto os médicos cardiologistas, dermatologistas e oncologistas. No entanto, sou um defensor da combinação de forças e qualidades. Dificilmente vamos conseguir digitalizar a empatia e o bom senso médico, mas podemos digitalizar o que hoje demanda muita energia e tempo do médico em uma consulta e “livrar” o profissional para exercer uma medicina mais humana.
No grande desafio do Simpósio Internacional de Imagem Biomédica do ano passado, os competidores criaram sistemas computacionais para detecção de câncer de mama metastático em imagens inteiras de lâminas de biópsias de linfonodo sentinela. O algoritmo vencedor teve uma taxa de sucesso de 92,5%. Quando um patologista revisou independentemente as mesmas imagens, a taxa de sucesso foi de 96,6%. A combinação das previsões do sistema de aprendizado profundo com os diagnósticos do patologista humano aumentou a taxa de sucesso do patologista para 99,5%!
Uma redução de aproximadamente 85% na taxa de erro humano.
A medicina de precisão é o fim do toque humano?
Com as vantagens também virão considerações éticas e questões legais.
- Quem é o culpado se um sistema de IA tomar uma decisão ou previsão falsa?
- Quem irá incorporar recursos de segurança?
- Como a economia responderá ao surgimento da IA quando ela começar a inutilizar certos empregos?
Moral Machine – MIT
Com carros sem motorista, há um debate global sobre quais decisões os algoritmos tomariam em situações complicadas. Existe um teste publicado pelo MIT para análise na tomada de decisões para os carros autônomos, a Moral Machine.
Quando se trata de saúde, isso se torna um desafio ético muito maior. Há mais perguntas não respondidas hoje do que podemos lidar e esperamos que, com as discussões públicas em todo o mundo, isso se esclareça à medida que a IA está se tornando uma realidade.
A previsão feita pela IA é mediada com base na precedência, gerando aprendizado de máquina, mas os algoritmos podem ter baixo desempenho em novos casos de efeitos colaterais de medicamentos ou resistência ao tratamento em que não há exemplo anterior para se basear. Portanto, a IA pode não substituir o conhecimento tácito, sendo essa a prova de que não podemos facilmente codificar a medicina pura e simplesmente.
Esse processo de transformação requer uma miríade de tecnologias disruptivas a serem implementadas no desenvolvimento de tratamentos, na prática da medicina e na prestação de cuidados. No entanto, a análise de dados, por mais avançada que seja, deve apoiar as habilidades dos médicos e não substituir a relação tradicional médico-paciente. Para manter o toque humano na medicina de forma a aumentar as oportunidades de tratar as pessoas certas com as terapias mais personalizadas, listo algumas preparações que vejo como úteis:
- A criação de padrões éticos sobre o uso de IA aplicáveis e obrigatórios para todo o setor de saúde.
- O desenvolvimento incrementalmente gradual da IA, no qual cada etapa pode ser avaliada claramente antes de prosseguir para o próximo nível de desenvolvimento, para dar tempo ao mapeamento das possíveis desvantagens/erros e construir sistemas à prova de falhas, evitando um apocalipse da IA.
- Para os meus colegas médicos, adquirir conhecimentos básicos sobre como a IA funciona em um ambiente médico para entender como essas soluções os ajudarão em seu trabalho diário. Embora nenhuma IA se destine a substituir os médicos, os médicos que usam IA podem substituir aqueles que não o fazem. #ficaadica
- Para os pacientes, se acostumar com a IA e descobrir seus benefícios.
- Para empresas que desenvolvem soluções de IA, pesquisas revisadas por pares e uma comunicação clara com o público em geral sobre as vantagens e riscos potenciais do uso de IA na medicina.
- Para tomadores de decisão (instituições de saúde), realizar todas as etapas necessárias para poder medir o sucesso e a eficácia do sistema. Também é importante incentivar as empresas a oferecer soluções de IA acessíveis, pois é a única maneira de tornar realidade a promessa da ficção científica e transformar a IA no estetoscópio do século XXI.
Por meio da transformação cultural chamada saúde digital, a hierarquia da medicina tradicional está se transformando em uma parceria de nível igualitário entre pacientes e cuidadores. Além de muitas tecnologias disruptivas, a IA tem o maior potencial para apoiar essa transição, analisando a grande quantidade de dados que pacientes e instituições de saúde registram a cada momento. Ao eliminar as partes repetitivas do trabalho de um médico, pode levar a que ele possa passar um tempo mais precioso com seus pacientes, melhorando o toque humano. No entanto, a IA só pode cumprir sua missão se continuar sendo uma ajuda segura, eficiente e comprovada no tratamento de pacientes e na melhoria da saúde.
* Milton Andrade é Médico graduado em Medicina pela Universidade Federal do Paraná, gestor de projetos e estruturação de serviços em Telessaúde, empreendedor e entusiasta das Healthtech.