Um setor essencial que opera no limite
Nada acontece no mundo digital sem passar pelas redes de telecom. Está presente em absolutamente tudo: do trabalho remoto à logística, do lazer ao agronegócio. No entanto, apesar dessa centralidade na vida moderna, há uma crise silenciosa rondando o setor e pouca gente tem coragem de nomeá-la.
É a crise do modelo de negócios baseado na hipercompetição e na guerra de preços.
Nos últimos anos, provedores de internet, operadoras móveis e empresas de tecnologia vêm disputando cada centavo do consumidor em um ambiente cada vez mais saturado, fragmentado e com margens espremidas. O número de players aumentou, os pacotes ficaram mais agressivos, as ofertas mais baratas. Mas os efeitos colaterais estão se acumulando.
E o setor precisa parar e repensar.
O paradoxo da conectividade: investir mais para ganhar menos
Vivemos um paradoxo. A demanda por conectividade cresce. A base de usuários também.
Os investimentos em infraestrutura seguem pesados: 5G (logo 6G), redes FTTH (XGPON/XGSPON), backbones de alta capacidade, segurança, automação, edge computing. Mas, mesmo assim, as receitas não acompanham esse esforço. Em muitos casos, elas encolhem.
Por quê?
Porque o modelo atual se apoia numa lógica predatória de crescimento via preço e não via valor. As empresas reduzem suas ofertas ao máximo para conquistar mercado, mesmo quando isso significa operar com margens baixíssimas ou até prejuízo.
Esse modelo até pode funcionar no curto prazo. Mas, no longo, destrói a capacidade do setor de investir, inovar e manter a qualidade.
Quando concorrência demais vira problema
É comum pensar que mais concorrência significa mais vantagem para o consumidor. E sim, até certo ponto, isso é verdade. Mas o que o Brasil vive hoje não é uma competição saudável baseada em valor. É quase uma corrida para o fundo.
No mercado de banda larga fixa, por exemplo, temos mais de 22 mil ISPs ativos (dados paralelos mostram um possivel número chegando perto dos 40 mil).
Na teoria, isso poderia gerar diversidade de serviços e preços justos. Mas o que acontece na prática é que muitos desses provedores operam em regiões sobrepostas, competindo com grandes operadoras e entre si, com pouca escala, altos custos operacionais e necessidade constante de promoções para manter o cliente.
O resultado?
- Redes ociosas.
- Estruturas frágeis.
- Dificuldade de reinvestimento.
- Pressão sobre qualidade e atendimento.
- E um mercado que gasta bilhões para se autocompetir ao invés de construir valor.
A lógica do preço baixo tem um custo alto
No imaginário do consumidor, mais gigas por menos dinheiro parece um ótimo negócio. Mas esse discurso, quando empurrado ao extremo, mina a sustentabilidade do setor.
Por trás de cada oferta agressiva existem custos invisíveis: infraestrutura, manutenção, pessoal técnico, atendimento, inovação, cibersegurança. Quando o preço final não cobre esses elementos, alguém paga a conta e, geralmente, é o próprio consumidor, com redes instáveis, suporte precário e escassez de novidades.
Pior: essa lógica desestimula movimentos estruturantes, como fusões, parcerias estratégicas e modelos colaborativos. Porque, se a única moeda de valor percebida é o preço, qualquer outra construção perde força.
O que está em jogo: futuro ou esgotamento?
O setor de telecom vive um ponto de inflexão. De um lado, há uma exigência crescente por conectividade de altíssima qualidade, com baixa latência, segurança, cobertura total, integração com plataformas digitais, mobilidade e soluções para B2B, cidades inteligentes, telemedicina e muito mais. De outro, há um modelo comercial que insiste em vender gigas como se fossem commodities sem margem para inovar.
A conta não fecha.
E se não enfrentarmos esse desalinhamento, os efeitos virão em cadeia:
- Redução da qualidade de serviço;
- Desaceleração da inovação;
- Aumento do churn;
- Desvalorização das marcas;
- Desmotivação dos profissionais.
Hora de mudar o jogo: do preço para o valor
O setor precisa mudar o eixo da conversa. O consumidor não precisa apenas de “mais internet”. Ele precisa de conectividade que funcione, que proteja, que se integre ao seu estilo de vida. Precisa de experiências digitais completas, com Wi-Fi gerenciado, segurança cibernética, atendimento de excelência, mobilidade e soluções que resolvam sua rotina.
Isso exige que as empresas deixem de ser apenas fornecedoras de banda e passem a ser plataformas de valor. Exige coragem para educar o mercado, abandonar a síndrome da promoção eterna e investir em diferenciação real.
A lição que vem da consolidação inteligente
A consolidação não é um problema, é uma resposta natural ao esgotamento de modelos fragmentados. A união de forças entre empresas pode reduzir duplicidades, otimizar investimentos, gerar escala e criar condições para que a inovação avance.
O Brasil já começa a viver esse movimento, com fusões entre ISPs, redes neutras ganhando tração e provedores se unindo a parceiros maiores por meio de franquias ou modelos cooperativos. É uma oportunidade de amadurecimento do setor, desde que feita com visão estratégica, sem eliminar diversidade ou qualidade.
Sem valor, não há futuro
O mercado de telecom não pode se dar ao luxo de continuar crescendo sobre alicerces frágeis. A conectividade é essencial demais para ser tratada como uma commodity. E a hipercompetição, se não for repensada, vai continuar corroendo a base do setor.
A próxima década exigirá mais do que redes velozes. Vai exigir inteligência estratégica, visão de longo prazo e, acima de tudo, um novo pacto entre empresas, clientes e o mercado: o de gerar valor real, sustentável, para todos.
* Por Matheus Cofferri, especialista em conectividade, inovação e crescimento de mercado de ISPs.
Tags