À medida que os países mundo afora reabrem suas fronteiras, o turismo – segmento que representava, até março de 2020, por volta de 10% do PIB global – vai reganhando força. Os negócios atuantes nesse segmento – profundamente afetados, e às vezes de forma desproporcional – estão reabrindo, contratando, e se adaptando à nova realidade. Mas há muitos desafios nesse retorno, e não apenas nos protocolos de biossegurança e reequilíbrio de preços. Haverá espaço para a inteligência artificial apoiar a retomada do turismo?

Há diversos caminhos pelos quais podemos responder, aprioristicamente, que sim – podemos olhar para o governo, para as empresas no setor de turismo, e, não menos importante, para o turista.  

O primeiro caminho diz respeito às políticas públicas e ao esforço de retomar, ainda que de maneira diferente, a promoção do turismo. Na mesma direção de outros tantos braços do governo, os responsáveis, no Executivo, pelo desenvolvimento do turismo e dos setores correlatos vêm gradualmente se munindo de ferramentas de inteligência de dados.

A ideia inicialmente é reduzir ou preencher as lacunas das bases de dados que embasam as políticas de promoção turística, mas o potencial de curto prazo é significativo: imagine o quão valioso pode ser saber, de fato – e não por estimativa, aproximação, ou extrapolação de pesquisas de campo com pequena amostragem –, quem é o seu visitante (de onde vem, como toma decisões, quanto gasta, onde e em quê gasta etc.)? Ter um perfil 360º do visitante inbound em constante atualização pode mudar velhos preceitos e premissas da promoção de destinos turísticos e direcionar escassos recursos para onde o retorno do investimento for mais evidente.

Uma outra grande área em que a IA pode colaborar com a retomada do turismo é apoiando as empresas do setor, tanto diretamente – gerando eficiência, por exemplo – como indiretamente – auxiliando os usuários finais na sua interação com aquele negócio.

Apesar de ainda tímido para o segmento de hospitalidade, sobretudo no Brasil, um tema em ascensão é a interação de IA com humanos. Isso pode acontecer, como já se vê consolidar em outras indústrias, no uso de chatbots,[i] mas também se dá no menos comum uso de robôs, virtuais ou não, que ajudam com demandas pontuais como check-in,[ii] resolução de dúvidas ou pequenas demandas, serviço de concierge,[iii] entrega de room service, entretenimento… E até com instalações inteligentes, como quartos com reconhecimento de voz.  

A IA também já é usada hoje na automação de serviços diversos como limpeza e até carregamento de malas. Alguns lugares já estão experimentando com IAs que monitoram protocolos de biossegurança e que podem acelerar o processo de check-in, por exemplo, se consegue acessar um passaporte virtual de vacinação. A IA também pode facilitar o aprendizado das empresas e dos destinos turísticos ao processar grandes volumes de avaliações e sentimentos de viajantes de todo o mundo, e gerar recomendações de melhoria exequíveis.

Há, claro, outros usos não específicos do segmento de turismo mas que também podem gerar valor para as empresas atuando no turismo, como sistemas de tradução simultânea (úteis para o turismo, e podem ser cruciais para o segmento de grandes eventos)[iv], gestão de preços dinâmicos, gestão de backoffice, manutenção preditiva e cuidados aos meio ambiente,[v] transporte autônomo[vi]

É verdade – todos esses casos de uso apresentados até aqui podem impressionar, divertir, ou até assustar alguns viajantes (o desconforto pode existir principalmente para os usuários mais preocupados com sua privacidade ou o ocasional neoludita…). No fim, o foco deve ser sempre no usuário final, certo?

Por isso, é importante que olhemos também para a perspectiva dos eventuais serviços que a IA já tem a oferecer hoje para o viajante, particularmente no contexto da experiência do usuário. Vale ressaltar que a tendência, já forte em algumas indústrias, de entender e melhorar a experiência do consumidor aparece com força redobrada na retomada do turismo.[vii]

Se você, caro leitor, é um assíduo leitor desta coluna, já sabe que a personalização – e, eventualmente, a ultrapersonalização – de serviços para o usuário é uma das áreas em que a IA pode ser,  e efetivamente já vem sendo, particularmente útil. A IA pode apoiar, facilitar e até fazer sugestões em todas as etapas de tomada de decisão do viajante – do momento em que se decide viajar à customização do pacote de viagem à experiência pós-viagem.

Em um futuro não tão distante, a IA pode gerar um pacote completo e inteiramente customizado, incluindo transporte, hospedagem, reservas em restaurantes e atrações, todos levando em conta as preferências do usuário nos seus mínimos detalhes. Eventualmente, uma IA avançada poderia intermediar os interesses dos usuários, dos destinos, e das empresas que os atendem para garantir melhor distribuição dos fluxos de pessoas ao longo das temporadas, até dentro de um mesmo dia. Isso não seria tão distante do que alguns aplicativos de trânsito já fazem, recomendando a usuários que evitem determinadas vias em horários de pico, efetivamente ajudando o sistema local de transportes a evitar ineficiências.

Ainda que isso venha a ser ou seja uma tendência, não chegamos lá ainda. A vontade que o aplicativo de trânsito atende é, principalmente, a vontade de não atrasar na locomoção do ponto A para o ponto B. Por outro lado, o que uma viagem atende – seja de turismo, seja de negócios, ou um misto dos dois – é um conjunto complexo de vontades nem sempre manifestas.

Como já venho dizendo nesta coluna, a IA deve ser vista como tecnologia aplicada; ela deve ser complementar ao serviço humano, e funcionar como uma ferramenta que nos leva mais longe – no caso de viagens internacionais, quiçá literalmente. Para muitos, a experiência de interagir exclusivamente com máquinas ainda é considerada inferior a interagir exclusivamente com humanos, e isso se deve principalmente ao fato de que a máquina (ainda) não desenvolveu empatia. (Quem já ficou preso em um ciclo interminável de opções em um menu de call center antes de conseguir falar com um atendente sabe do que eu estou falando).

Certamente, há ainda outras áreas de interseção entre turismo e IA que não foram ora abordadas, e outras mais que talvez desenvolvedores, pesquisadores, formuladores de políticas públicas ainda não tenham considerado.[viii] Mesmo assim, pelo visto até aqui, há que se concordar que há muito que a IA tem a oferecer para a retomada do turismo mundo afora. Seguiremos acompanhando como os diversos usos de IA trarão inteligência, automação, eficiência, e personalização para viajantes mundo afora.

 


[i] Um piloto testou um chatbot para centralizar a comunicação com o turista que visita a cidade de Jeddah, na Arábia Saudita. A pesquisa sugere que a o resultado do teste foi positivo, ressaltando a compreensão das dúvidas dos usuários e o fato de que a aplicação se comunicava na língua do usuário e enviava respostas em tempo real. Leia o artigo acadêmico aqui: https://www.researchgate.net/publication/347134431_AI_Chatbot_for_Tourist_Recommendations_A_Case_Study_in_the_City_of_Jeddah_Saudi_Arabia

[ii] A rede Hilton fez um piloto com o robô Connie, em parceria com a IBM, que acelarava os processos de check-in, em 2016: https://www.usatoday.com/story/travel/roadwarriorvoices/2016/03/09/introducing-connie-hiltons-new-robot-concierge/81525924/

[iii] Veja um exemplo de um chatbot da rede Radisson Blu: https://www.forbes.com/sites/janetwburns/2016/05/10/radisson-blu-hotel-guests-can-now-text-edward-the-chatbot-for-service/

[iv] Ewandro Magalhães, executivo da Kudo, empresa que se especializa em interpretação remota, explora, neste artigo, o tema de IA substituindo ou alterando o trabalho dos intérpretes: https://kudoway.com/blog/will-ai-eventually-replace-human-interpreters-a-message-from-kudos-chief-language-officer-ewandro-magalhaes/

[v] A rede Hilton já utiliza dashboards apoiados por machine learning para medir a sustentabilidade dos seus hoteis há mais de uma década. Leia aqui: https://newsroom.hilton.com/brand-communications/news/lightstay-a-decade-of-managing-our-environmental-and-social-impact  

[vi] Este artigo (leia aqui) da minha coluna explora um pouco dos desafios do transporte autônomo.

[vii] “[H]á um distanciamento de serviços pasteurizados, comprados em catálogos de agências, por exemplo. (…) A recompensa é acessar locais não antes conhecidos, que revelem histórias excepcionais e conexões verdadeiramente autênticas”, explica a professora Jaqueline Gil, consultora em turismo e fundadora da AmpliaMundo. Leia mais: https://cndl.org.br/varejosa/viagem-em-2021-o-ano-de-microtendencias-de-turismo/

[viii] Uma das formas de acelerar esse processo de descobertas é por meio de hackathons, que são maratonas de troca de ideias, desenvolvimento e prototipagem de novas soluções que exploram os limites de conjuntos de dados, linguagens, e códigos, e tentam resolver problemas reais. Recentemente, uma parceria de empresas com a prefeitura de Belo Horizonte realizou um hackathon com o tema “turismo, tecnologia, tendência”.