Apesar do título, este artigo não aborda um futuro em que as máquinas dominam (ou minimamente coexistem lado a lado) com os humanos. O tema, na realidade, parece bem mais simples: poderia a IA, que é uma tecnologia aplicada, ajudar humanos na (difícil) tarefa de gerenciar outros humanos? Essa pergunta me foi recentemente feita por um leitor, e a resposta, por ora sem grandes rodeios, é “sim”.
De fato, grandes empresas mundo afora já adotam, uns com mais eficiência ou há mais tempo que outros, métodos sofisticados para processar dados da sua força de trabalho. Essas análises são, então, aplicadas a áreas como mensuração de produtividade, engajamento, e retenção de talento. Não costumam ser investimentos pequenos, aliás. Isso também não é grande surpresa: de um lado, diversas áreas do negócio já contam há muito com casos de uso de dados e automação – finanças e marketing, por exemplo; de outro lado, se as empresas são feitas de pessoas (e de processos e de tecnologia), por que não garantir que a área que cuida das pessoas seja alimentada por inteligência de dados?
E isso também vale para o departamento de RH. Uma pesquisa da IBM mostra que, após dois anos, há claro retorno sobre investimento (ROI, da sigla em inglês) para organizações que adotam IA na gestão do RH, com uma redução de 22% do custo da área comparado a organizações que não adotaram IA.[i] E isso pode se concretizar por diversas razões: redução de processos internos, mais treinamento com menos gastos, ou até porque foram reduzidos gastos com seleção e admissão de pessoal.
A análise de dados potencializada por IA reduz o “achismo” da gestão, o que pode reduzir o risco de políticas e decisões contraproducentes, e concomitantemente aumentar a ênfase em políticas e decisões que trazem resultado para o negócio. A jornada de adoção de IA em uma função organizacional pode ser assim desenhada:
1. Principiante ou experimental: estou começando a usar, e sei que perguntas preciso fazer;
2. Descritivo: consigo usar dados para enxergar um fato;
3. Diagnóstico: consigo explicar porque esse fato aconteceu;
4. Preditivo: consigo prever a probabilidade de esse fato acontecer; e
5. Prescritivo: já sei o que fazer para obter o resultado desejado.
Porém, ao contrário do que talvez tenha sugerido no primeiro parágrafo, as coisas não são tão simples: sair dos primeiros níveis pode ser difícil quando o tema é gestão de pessoas. Um relatório da Oracle revela que o RH entrou relativamente tarde na fila da adoção de ferramentas de análise de dados – ainda que tenha forte potencial de aceleração. [ii]
Afinal, o que constitui um “bom funcionário”? Com ferramentas de dados à mão, uma análise unidimensional pode ser substituída por uma avaliação multifatorial alimentada por diversos conjuntos de dados e por outras análises. Vale ressaltar, no entanto: decisões tomadas por um fator são fáceis de explicar, enquanto decisões complexas que pesam diferentemente dezenas ou centenas de métricas podem, às vezes, parecer distantes, frias, inexplicáveis.
Ainda assim, para que isso seja possível, é preciso que esses dados existam e estejam minimamente estruturados – inclusive os dados sobre resultados. Disponibilidade de dados pode ser um desafio na implementação de IA no RH, na medida em que uma empresa pode ter muito menos funcionários que clientes ou transações, por exemplo.
Não menos relevante é o fato de que decisões do RH (contratação e demissão, nos dois extremos) podem ter impacto tão significativo na vida das pessoas que a preocupação com a justeza e o embasamento da decisão são imprescindíveis. E a questão da explicabilidade (mencionado acima no caso da avaliação), ou falta dela, pode ser causa para ainda maior aflição para todos os envolvidos. (A Lei Geral de Proteção de Dados prevê o direito à revisão das decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado.)[iii]
E nada disso é coisa do futuro (tanto que já há trecho de lei versando sobre o tema).
Há diversos exemplos de aplicação de IA para gestão de pessoas no Brasil e no mundo afora, que vão desde melhorar processos seletivos (inclusive prevendo candidatos de alto potencial), até customizar jornadas de treinamento e acelerar processos internos (pedidos de férias, processamento de atestados, envio de holerite etc.).
Shawn Achor, autor do best-seller “O jeito Harvard de ser feliz”, explica que empregados mais otimistas superam seus colegas mais céticos em termos de vendas, níveis de energia, retenção e saúde. Se isso é verdade, faria sentido investir pesadamente em otimizar a experiência do funcionário para que ele seja mais efetivo e eficiente; e isso, ainda segundo Achor, é exatamente o que tem acontecido.
A IBM notou, por exemplo, que funcionários que tinham mais conexões sociais com seus colegas de trabalho rendiam em média US$ 948 a mais para o negócio, e, por conta disso, a empresa criou um programa para facilitar a apresentação de colegas de trabalho que ainda não se conheciam.[iv] Já a Best Buy, empresa americana no ramo de varejo, identificou que aumentar o engajamento dos seus profissionais em 0.1% em uma única loja já causava um aumento de US$ 100 mil no faturamento. [v] Na Sprint, uma empresa de telecomunicações, observaram à época que a retenção de novos profissionais estava relacionada à adesão ou não deles ao benefício de previdência privada. [vi]
Para que tudo isso funcione bem, a empresa, no geral, e o departamento de RH, em particular, devem passar pela jornada de internalizar a cultura de tomada de decisão baseada em dados (o que inclui, por exemplo, adicionar habilidades em ciência de dados à função e integrar dados com outros departamentos da empresa), sem perder de vista a relação humana. A IA entra nessa jornada como potencializadora da cognição humana, apoiando – e não necessariamente substituindo – a tomada de decisão da pessoa natural.
Essa transformação está acontecendo, paulatina e simultaneamente, em muitos lugares. Seja lá o quanto a função de gestão de pessoas vai ser transformada por IA no curto, médio e longo prazos, não faltarão grandes questões a serem melhor estudadas na interseção de IA de RH. Quantos paradigmas de hoje não caducarão até lá?
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No mês passado, eu escrevi para essa coluna sobre carros autônomos. Durante as Paraolimpíadas de Tóquio, um veículo autônomo da Toyota atropelou um atleta japonês. Ele não se feriu gravemente, mas foi o suficiente para que ele tivesse que abandonar uma competição. À imprensa, e depois de se desculpar publicamente, a Toyota disse que o veículo e o operador do veículo acionaram o freio de emergência, e que, apesar da redução de velocidade, isso não teria sido o suficiente para parar completamente o automóvel e evitar a colisão. A empresa prometeu, ainda, seguir trabalhando em melhorias de segurança, e que estava cooperando com a investigação policial para entender as causas do acidente.[vii]
[i] Leia mais aqui: https://www.ibm.com/downloads/cas/M6DXEAVX
[ii] Leia mais aqui: https://www.oracle.com/a/ocom/docs/hr-analytics-report-ipaper.pdf
[iii] Na versão da LGPD que saiu do Congresso para sanção, a lei previa, ainda, que essa revisão deveria acontecer por pessoa natural, mas esse trecho foi vetado pela presidência da república.
[iv] Leia mais aqui: https://www.forbes.com/sites/jennagoudreau/2010/10/26/are-you-investing-in-the-happiness-advantage/?sh=456faa5c6983
[v] Leia mais aqui: https://hbr.org/2010/10/competing-on-talent-analytics
[vi] Idem.
[vii] Leia mais aqui: https://www.bbc.com/news/business-58390290