Na mitologia grega, quando tentavam fugir de uma prisão com asas feitas de cera de mel e penas de gaivota, Dédalo disse a seu filho Ícaro: “nem tanto ao céu, nem tanto ao mar” para não derreter ou molhar a cera das asas. A mesma recomendação pode ser feita aos profissionais e instituições em relação ao ChatGPT na saúde, ferramenta que está dando o que falar ultimamente. Antes de abraçar a novidade sem questionamentos ou de negar seus possíveis benefícios, o equilíbrio é a melhor recomendação para todos.
A cautela se faz necessária. A não ser que você tenha hibernado nos últimos três meses, certamente já leu ou ouviu falar sobre o ChatGPT, a plataforma de redes neurais e machine learning desenvolvida pelo laboratório Open AI. Por meio de recursos de inteligência artificial, a solução é capaz de cruzar informações disponíveis digitalmente para entregar interações e conteúdos ricos em detalhes a partir de pedidos dos usuários.
O nível de acurácia e de complexidade das informações passadas realmente é impressionante. Não à toa, houve uma rápida adesão como raramente se vê mesmo na alta velocidade da evolução tecnológica. Lançado em novembro de 2022, atingiu a marca de 100 milhões de usuários em janeiro de 2023, apenas dois meses depois. Para se ter uma ideia, o TikTok chegou a este número após nove meses de lançamento; o Instagram, dois anos! O chatbot já está na história como a aplicação de maior crescimento da história.
A questão é que há dois lados nessa moeda. Ao mesmo tempo em que mais pessoas utilizam seus recursos e espalham mais rapidamente seu conceito e suas possibilidades, a pressa pode, de fato, ser inimiga da perfeição. No afã de encontrar oportunidades e de acelerar a transformação digital, as pessoas se esquecem que estamos falando de uma ferramenta, isto é, algo que deveria facilitar processos e não tomar conta deles. É a partir do estudo, do aprofundamento e do debate que um sistema tecnológico consegue crescer sem maiores adversidades. Quando se fala de medicina e do ChatGPT na saúde, essa precaução deve ser a regra e não a exceção. A primeira – e maior – preocupação é pela qualidade de vida dos pacientes, incluindo o tratamento de doenças, o estímulo a hábitos saudáveis e até a proteção de suas informações. A tecnologia pode (e deve) ser utilizada, mas sempre após intenso estudo e preparação por parte de médicos, hospitais e consultórios. Portanto, nem tanto ao céu e nem tanto ao mar na adoção do ChatGPT na rotina médica.
ChatGPT na saúde: muito mais do que um assistente virtual
De e-books a sugestões de receitas culinárias, passando por textos diversos, traduções e atendimento na base de perguntas e respostas, a plataforma rapidamente caiu no gosto de empresas e pessoas. Na área médica, as primeiras experiências, por assim dizer, incluem a utilização da ferramenta como assistente virtual dos profissionais, auxiliando na elaboração de atestados médicos e lembrando de compromissos a serem feitos.
Isso já é uma funcionalidade interessante, sem dúvida, mas o ChatGPT na saúde pode ir além da automatização de tarefas burocráticas. Afinal, se a plataforma cria interações e desenvolve conteúdos a partir de dados digitais já existentes, imagina o que ele não pode fazer a partir das informações dos pacientes disponíveis nos consultórios médicos por meio dos prontuários eletrônicos?
Sempre afirmei que os prontuários assumiram o papel de hub de informações para qualquer médico. É praticamente o coração do consultório, que bombeia os dados mais importantes para facilitar a tomada de decisão, melhorar o diagnóstico e otimizar o tratamento. Ao acoplar o ChatGPT com o prontuário eletrônico, o médico pode conseguir informações mais rápidas – e completas – para o dia a dia de suas consultas.
Dessa forma, fica muito mais fácil de elaborar tratamentos cada vez mais personalizados e preditivos, isto é, focado na prevenção e não apenas no combate a uma doença. O recurso pode combinar todos os dados clínicos das pessoas com informações externas, como o ambiente em que vivem, clima, etc., além de cruzar com conteúdos especializados da literatura médica já disponíveis pelo prontuário.
Ética e “cultura digital” são os desafios do ChatGPT na saúde
Evidentemente, estes benefícios são apenas parte da história. Ao mesmo tempo que as soluções tecnológicas apresentam vantagens para os usuários, elas também trazem novos riscos que precisam ser combatidos por estas mesmas pessoas. No caso do ChatGPT na saúde, pelo menos três problemas despontam como os principais neste primeiro momento.
O primeiro deles é justamente a questão ética. Para alcançar os resultados esperados, a plataforma precisa utilizar os dados dos pacientes – considerados sensíveis pela Lei Geral de Proteção aos Dados Pessoais (LGPD). Ou seja, é necessário redobrar a segurança em torno deles para evitar qualquer violação ou vazamento que possa expor as pessoas.
Além disso, a própria qualidade das informações também é um desafio no cenário brasileiro. Em meio a onda de fake news e desinformação, é necessário separar o que é válido e o que é descartável para realizar diagnósticos, sugerir tratamentos e recomendar remédios. Por fim, há a própria barreira cultural, uma vez que ainda há um percentual significativo de médicos que evitam soluções tecnológicas em seu expediente – imagina, então, utilizar inteligência artificial como apoio.
É nesta balança entre facilidades e perigos que o ChatGPT convive neste seu primeiro ano de funcionamento. Como vai ser no futuro? Difícil fazer essa previsão. É certo, porém, que a tecnologia, seja ela qual for, tende a ganhar mais espaço não apenas na área médica, mas em todos os setores. Por isso, o ideal é não ir muito ao céu e nem ao mar. Com equilíbrio, é possível ir além e atingir novos objetivos sem colocar em risco a informação dos pacientes e a reputação de seu trabalho.
Tiago Delgado é sócio-fundador da Medicina Direta, empresa especializada em tecnologia na área de saúde.
* Conteúdo original do Portal Saúde Business, clique aqui para acessar o artigo original.